sábado, 1 de fevereiro de 2014

Máscaras: Sonhos Roubados



Nada mais fazia sentido em sua mente agora caótica. Olhos sobressaltados, coração acelerado, sudorese... o fôlego lhe falta e mal sente seus pés, mas entende que precisa continuar correndo. Não há sequer brisa que lhe acompanhe nessa noite com odor de medo.

Cais do Porto – Rio de Janeiro.
Ela chega recatada e sublimemente alinhada como uma verdadeira dama da sociedade. Cabelos presos, terninho de cor sóbria e pequena valise de mão. Ao desembarcar do Sonhos dos Trópicos – transatlântico que corta os mares desde o porto de Londres – apenas ajeita seu par de óculos negros para vislumbrar essas terras que há muito abandonara. Na valise, apenas o indispensável, porém carrega no olhar o peso de algo que sua altiva figura esconde.
-Por aqui madame, seu carro a aguarda... posso lhe ser útil em algo mais? Pergunta o serviçal do Porto.
-Sim...
-Pois não?
-Não me dirija a palavra, apenas isso!
O pobre apenas contempla figura perfeita emoldurada em glamour e veneno desaparecer naquele sedã negro. Mal sabe que sua falta de educação não é o seu maior dom.
Ela usa o telefone e em francês dá algumas ordens a alguém que certamente não está tão longe. Desliga abruptamente e apenas diz em tom de desdém:
-Negócios primeiro, Ângelo!
O motorista com cara de leão-de-chácara apenas olha pelo retrovisor e entendendo perfeitamente onde devem ir, manobra o carro esnobe no calor do Rio. Logo chegam num casebre antigo porém de ar aristocrático que aguarda a fidalga figura. Ângelo sabe que precisa estacionar nos fundos para chamar o mínimo de atenção, como se um clássico da Mercedes Benz negro e reluzente, pudesse mesmo passar despercebido. Não nessas redondezas. Ela desliza de seu carro e adentra rapidamente no casario buscando clima mais ameno. O Rio está insuportavelmente quente, aliás como sempre.

-Seja bem vinda madame, é um prazer...
Seu olhar denota o asco de estar ali.
-Carlos, poupe-me de seus parcos recursos linguísticos e de sua falsidade. Eu sei muito bem que também não há nenhum prazer de sua parte em me ver, então vamos direto ao ponto. Quantas estão prontas para o embarque?
-Senhora... deixe-me explicar...
-Pareço demonstrar interesse em suas falácias?
-Entendi... direto ao ponto...
-Como deveria ser desde o início!
-Falta uma, senhora.
-Sua incompetência me cansa. Não serei mais benevolente com você! Hoje a noite ela precisa estar pronta, ou teria grande prejuízo em enviar a carga incompleta. Tenho compradores certos para cada uma das encomendas.
-Sim, madame... eu me viro...
-“Se vira”? Você “se vira”? Carlos, haja com eficiência ou será seu último trabalho ouviu bem?
-Claro madame, claro...

Ele sai da presença da agora consternada dama enigmática e sabe muito bem que suas juras não são obra de alegoria das palavras.
Longe dali, ela joga seus longos cabelos loiros enquanto corre apressadamente em busca de um táxi na Rio Branco. Está atrasada pois quer antes do jantar tão especial que seu namorado lhe marcou por SMS, fazer sua academia, quase um templo do corpo que cuida como máquina. O táxi para. Ela entra velozmente e lhe dá as coordenadas que culminaria em seu destino. Ali sentada sonha acordada com o pedido tão sonhado. Mal poderia esperar que viesse assim tão rápido. Os minutos árduos do trânsito confuso do Rio passam sem que sinta. Sua mente está nas nuvens. Tenta ligar pra mãe... apenas caixa postal. Nessa hora sua irmã não irá atender por causa do sinal péssimo da operadora na Serra do Rio, resta apenas o aconchego da melhor amiga, mas nota que seu celular está quase sem bateria, mal comum dos telefones modernos.
“Chegamos” avisa o taxista. Ela paga pelos serviços e adentra com a energia de um furacão. Claro que nunca notaria figura de malandro neoclássico que a observa atentamente do outro lado da rua. Seus olhos brilham pois sabe que se trata de bela mulher. Exatamente nos moldes que sua patroa o encomendou!
Cerca de quarenta minutos depois ela surge com trajes de malhação, cabelos presos, meio esbaforida. Olha pros lados como que buscando condução. Procura algo no celular em vão. Está definitivamente sem bateria. Preocupada começa a andar à procura de alguma condução que a salve. Anda ainda meio desligada, pois sua mente é um turbilhão. Um misto de alegria e preocupação com o horário. “Porque não saí mais cedo”? As elucubrações a fazem simplesmente não perceber a estranha figura que a agarra por trás...
-Apressada, delícia?
-Que isso? Ma larga! Quem é você?
-Calma meu amor, hoje sou quem você quiser. Vamos conversar...
-Me solta, vou fazer um escândalo!
-Escândalo é você, coisa linda, grita pra mim vai...
Ela se apavora, pois sabe que um enfrentamento seria impensável, ele era muito maior e certamente estava disposto a absolutamente tudo. Num instinto completamente primitivo, crava seus dentes no braço do sujeito.
-Ahhhhhh....!!!
Ela corre como louca, sua vida pode depender disso. Estranhamente nota que a rua está deserta nessa parte do bairro, coisa completamente incomum prum dia de semana. Sente estar passando por momentos decisivos. Cansada, assustada e desorientada, dá tudo o que tem mas sabe que não conseguirá manter esse ritmo por muito tempo. Gastou tempo demais na esteira hoje, suas pernas mal obedecem. Não sabe se deve olhar pra trás para ver onde está o algoz, ou se corre ainda mais desesperadamente. No exato instante que tenta olhar, é surpreendida pela figura medonha e detestável desse odioso em sua frente. Paralisada, trêmula e quase sem ar, deixa-se ser agarrada e tomada pelo medo apenas desmaia nos braços de seu futuro raptor.
-Ah, se você não tivesse seu destino, garota! Ah, se eu tivesse mais tempo pra você...
Ele sai de cena com um sorriso macabro no rosto e arrasta a bela jovem loira pelas ruas escuras e sujas da cidade.

Quando acorda está amarrada, com uma dor de cabeça horrível e muito desorientada. Certamente fora drogada, pois mal consegue elaborar sentenças. É quando ouve o som de saltos finíssimos no chão metálico, escuro e sujo. A silhueta revela bela mulher de não mais de trinta, bem vestida, batom cobre e perfume inebriante. Quase se sente salva. Figura tão perfeita não poderia representar mal. É quando ela chega perto o suficiente para com a mão direita tocar seu queixo e erguê-lo para melhor ver seu rosto.
-Perfeita, Carlos. Essa vai servir.
-Servir? Por favor moça, do que está falando? Me ajude a sair daqui. Fui raptada e hoje é meu... meu noivado. Ao terminar a frase, não consegue segurar o choro.
-Noivado? Não hoje meu bem. Você não poderá servir a um só nunca mais. Deveria estar feliz, provocará sensações prazerosas em grandes amantes ao redor do mundo. Já esteve no Velho Mundo ‘ma cherie’?
-Europa? Não!
-Você irá adorar, meu bem!

Ela desliza como que se não tocasse seus pés no chão e dá ordens visuais para que Ângelo e Carlos fechem pesada porta após si. Os gritos da moça fariam derreter o coração de qualquer ser com o mínimo de caráter. Mas logo deixam de serem ouvidos quando são cerrados atrás da porta imensa.
Os sonhos, planos, desejos de felicidade são obliterados pela falta de luz de algo que mais parece um container. Se ela simplesmente deixasse de gritar um pouco, ouviria outros sussurros, gemidos. Se ao menos deixasse um pouco de pensar apenas nos seus sonhos, quem sabe poderia sequer perceber que junto dela, outras jovens e belas mulheres fazem companhia em sina tão sinistra?

Em outros tantos pontos da cidade longe dali, noivos checam caixas de mensagens em seus telefones, pais ligam para amigos, irmãos correm para as portas de faculdades, mães acendem velas na intenção
das amadas que sem mais nem menos deixaram de cumprir suas agendas naquele dia. Em vão tentam achar algo que lhes faça sentido. Mal sabem que a dor da ausência e da falta de reposta às perguntas as assolará por tempos e tempos ainda.

Wendel Bernardes.


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